Papa África

Sem acesso ao mar, o Chade é um dos países mais isolados da África, e por isso costuma ser chamado de “coração morto” do continente. Essa característica geográfica é importante para compreendermos o valor da água em Um Homem que Grita. O filme começa e termina na água, com pai e filho confrontados numa situação primeiro lúdica, depois trágica.

O pai, Adam (Youssouf Djaoro), é um orgulhoso ex-campeão de natação que trabalha como salva-vidas na piscina de um hotel chique de N’Djamena, a capital do país. É auxiliado pelo filho, Abdel (Dioucounda Koma), que faz sucesso entre os jovens hóspedes, ex-soldados e brancos ricos. O hotel foi adquirido por chineses e passa por um processo de downsizing. Empregados são demitidos e Adam é rebaixado a guarda-cancela da portaria enquanto o filho ocupa seu lugar na piscina. O uniforme de porteiro, curto demais para o longilíneo Adam, simboliza sua humilhação, fazendo um paralelo em sentido contrário com o célebre personagem de Emil Jannings em A Última Gargalhada, de Murnau, que sofria por perder seu lugar (e farda) de porteiro de um grande hotel.

A aproximação de rebeldes em desafio ao governo central (fato real acontecido em 2007) vai detonar o drama pai-filho e descortinar um quadro estarrecedor de como a política interfere duramente na vida privada dos cidadãos chadianos. A cessão de filhos para o exército em troca de uma promoção que beneficiará toda a família é um dos capítulos mais dolorosos da história recente do Chade.

O diretor Mahamat-Saleh Haroun, um dos mais renomados diretores africanos da atualidade, trabalha mais no nível dos detalhes que do painel. Pivilegia os tempos interiores e os silêncios dos personagens em vez da ação e da informação didática. Ainda assim, seguimos com clareza as injunções sociais e emocionais de uma história em que a humilhação cede lugar sucessivamente à mesquinhez e à culpa. A sobriedade do filme é um fator de adesão do espectador aos sentimentos em jogo. As sequências finais, muito comoventes, se beneficiam de uma inteireza construída plano a plano ao longo de todo o filme, em tom circunspecto mas nunca seco ou evasivo.

Haroum já expressou em entrevistas sua intenção de fazer uma alegoria do país, da África e do planeta. Em cada uma dessas escalas, as velhas gerações estariam deixando legados nocivos para os jovens. Não creio que essas interpretações ampliem o sentido do filme, mas antes artificializem o sólido edifício dramático erguido com os personagens e sua relação específica com o contexto do Chade.

De qualquer forma, eis uma rara oportunidade de se ver por aqui um belo filme africano. Recomendado pelo Prêmio Especial do Júri em Cannes, Um Homem que Grita é o primeiro passo da nova distribuidora carioca Bonfilm, que já realiza o Festival Varilux de Cinema Francês e o Festival Ópera na Tela. O cartão de visita é pra lá de bon.            

2 comentários sobre “Papa África

  1. Gostei do texto. Estou com muita vontade de assistir esse filme do Haroun. É um dos cineastas mais interessantes da África contemporânea e, nesse seu desejo de alegoria, consegue ao mesmo tempo se voltar para o cotidiano, para o ínfimo dos “tempos mortos” da ação (como talvez dissesse David Bordwell), para o frágil caminhar dos tempos da vida e de suas pulsões em meio a tantas forças de morte. Em “Daratt”, que acho que foi traduzido em português como “Temporada de Seca” ou “Estação seca”, Haroun aborda a herança da guerra civil que marcou a segunda metade do século XX no Chade, mais uma vez sem didatismo, mas de forma informativa, isto é, também sem redundância. É outra alegoria, repleta no entanto de restos que ultrapassam sua moldura.

    P.S.: Precisamos de mais filmes africanos no Brasil! Não apenas em salas de cinema, mas em distribuição comercial em formato de DVD e afins.

    • Infelizmente não vi os filmes anteriores do Haroun. Concordo com você, Marcelo, sobre a necessidade de se melhorar a oferta de filmes africanos no Brasil.

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