Encontro com a moral burguesa

Entre os 60 novos DVDs lançados no último Festival de Brasília pela Programadora Brasil está o segundo filme de Walter Hugo Khouri. Estranho Encontro (1958) é uma peça de câmara para cinco atores e uma casa cheia de luxo e sombras. A partir de um encontro casual, numa estrada noturna, uma trama se desenvolve opondo o amor verdadeiro aos relacionamentos de tirania ou conveniência. Os desdobramentos são inesperados, e a atmosfera de tensão e romantismo se mantém até a última imagem.

Na exploração simbólica dos cenários de estúdio e da natureza ao redor, Estranho Encontro já demonstra a segurança de um mestre da direção clássica. Khouri recebeu os principais prêmios de melhor diretor de 1958, entre várias láureas atribuídas ao filme. Outros destaques são a fotografia de Rudolf Icsey e a trilha sonora de Gabriel Migliori, que intensificam as emoções em jogo.

Como em todo DVD da Programadora Brasil, este também é acompanhado de um folheto com texto crítico exclusivo sobre o filme. Nesse caso, o texto é meu e o reproduzo abaixo:

Os faróis de um automóvel rompem a escuridão da noite. Subitamente, o motorista freia diante de uma mulher parada no meio da estrada. Assim começa o “estranho encontro” de que fala o título. Marcos (Mário Sérgio) leva Julia (Andrea Bayard) para a casa aonde se dirigia e, por algum motivo, terá que escondê-la de um soturno caseiro (Sergio Hingst).

O filme abre com a notória figura da mulher enigmática: Quem é Julia? De que foge? Para onde vai? Com o decorrer da trama, descobrimos que ela não é a única a guardar um segredo. Marcos também tem o seu. A própria casa à beira de um lago, com suas sombras, escadas e paiol, parece uma entidade misteriosa que projeta seus miasmas sobre os personagens, potencializando a tensão por que eles passam.

No fundo, trata-se aqui de uma certa moral burguesa, ainda vigente em fins dos anos 1950, que opunha o amor verdadeiro às relações de interesse e dominação. Marcos e Julia, como veremos, são jovens de origem pobre e reféns de romances imperfeitos, dos quais precisam se ver livres. O estranho encontro será sua oportunidade de redenção afetiva.

Segundo filme de Walter Hugo Khouri, Estranho Encontro pertence à primeira das três fases de sua carreira. Mais tarde, Khouri ganharia fama como esteta do tédio e das fixações amorosas da alta classe média em obras memoráveis como Noite Vazia, O Corpo Ardente, As Amorosas, O Desejo e Paixão e Sombras – época em que seu estilo sofisticado e “europeu” acarretava paralelos com o cinema de Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni. Já a partir do fim dos anos 1980, sua veia autoral foi aplicada a explorações do erotismo soft, avalizado pela beleza de suas estrelas e o requinte em filmá-las.

Predominam nesse período inicial as histórias de fundo trágico, vividas entre poucos personagens e com participação bastante simbólica da natureza e dos cenários. Veja-se, por exemplo, o papel desempenhado pela sucessão de dias e noites em Estranho Encontro; a presença do lago e do bambuzal como possibilidades de fuga e ao mesmo tempo barreiras às pretensões dos personagens enredados (literalmente, como Julia com a rede de pescar sobre o rosto); os relógios sublinhando o tema da obsessão; os objetos que sugerem ameaças ou ecos nefastos. Os críticos sempre citaram a influência da série produzida por Val Lewton para a RKO nos anos 1940, em que o suspense nascia das emoções dos personagens, sendo mais subjetivo que ocasionado por fatores externos. O caseiro, portanto, seria uma materialização do medo de Marcos e Julia.

Filmando nos estúdios da Vera Cruz, extinta quatro anos antes como produtora, Khouri passeia com segurança pela linguagem clássica e tira grande partido da ambientação visual e sonora. Um dos elementos mais interessantes é a alternância de atmosferas musicais entre o piano clássico, que remete ao romantismo, o jazz, signo da dissipação sexual, e a trilha sonora original de Gabriel Migliori, provedora de expectativas dramáticas.

Esse conto moral sobre a luta entre o amor e os arranjos da conveniência reserva um tratamento surpreendente para os vilões. De um lado, Hugo (Luigi Picchi), semiparalisado por traumas de guerra, é um homem sem rosto até o terço final do filme, quando ressurge em cenas de grande impacto. De outro, Wanda (Lola Brah) praticamente reescreve seu caráter no desfecho, ao se transformar em heroína da solidariedade feminina e da integridade no amor.

Um comentário sobre “Encontro com a moral burguesa

  1. Exegese brilhante de um filme fora de série do cinema brasileiro. “Estranho encontro” surge, quase ao apagar das luzes dos anos 1950, como uma surpresa para o cinema brasileiro de então, revelando o extremo domínio formal de Walter Hugo Khoury no estabelecimento de sua ‘mise-en-scène’ impactual.

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