O messias do lixão

Lixo Extraordinário foi um dos documentários mais elogiados internacionalmente em 2010. Ganhou prêmios em Sundance, Berlim, Dallas, Seattle, Durban e mais outros tantos festivais, além de Paulínia, São Paulo e Manaus. Chega à corrida do Oscar como um dos 15 concorrentes a uma indicação. Nas justificativas dos prêmios, cita-se com frequência o “poder da arte” para “transformar a vida”. Em muitos casos, é provável que se confundam as virtudes do projeto original de Vik Muniz com as qualidades do filme. Isso é muito comum entre os docs. Cabe, portanto, distinguir uma coisa da outra – se isso for mesmo possível neste caso.

Consagrado no mercado de arte, Muniz viu no lixão de Jardim Gramacho uma oportunidade de restituir ao seu país de origem um pouco do sucesso obtido lá fora. O filme registra sua visita ao subúrbio paulista onde nasceu de família humilde. Mostra o supermercado onde ele empurrava carrinhos nos seus primeiros tempos de EUA. No lixão, Vik convoca catadores para posar para fotos e depois catar lixo para reconstruir as imagens em grande escala, que serão novamente fotografadas para as obras finais. O resultado, como bem conhecemos, é fascinante.

O processo gerou auto-estima e lucros para os participantes. “Já faz três anos que esse meu conto de fadas não termina”, disse recentemente numa entrevista Tião, um dos protagonistas e presidente da associação de catadores. Nenhum demérito, portanto, para um trabalho que mexeu, ainda que superficialmente, com alguns paradigmas sociais. O filme, contudo, deixa transparecer algumas fissuras nas atitudes que nortearam o projeto.

Incomoda particularmente a aproximação messiânica e empostada de Vik Muniz, disposto a “mudar a vida das pessoas”. A chegada de avião à área de Gramacho, as autorreferências elogiosas, o uso da expressão “fator humano” para se referir aos personagens das obras são signos de um salvacionismo apenas disfarçado pela declaração autocrítica colocada ao final do filme: Vik desconfia de que estaria se ajudando tanto quanto aos outros. Conversas instrutivas sobre arte contemporânea indicam o caráter pigmaleônico dessa relação entre a máxima celebridade e o estrato social menos qualificado, este em posição de beneficiários passivos.    

Na concepção das fotos, há um evidente desejo de “elevar” os catadores de lixo à condição de personagens clássicos ou mitológicos – Marat, madonas, anjos etc. A redenção momentânea vem através da grande arte e da literatura, num forte deslocamento dos personagens de seu meio, um pouco como fazem as fantasias de carnaval. Um bom momento do doc é quando se discute o que fazer com aqueles que não querem voltar para o lixão depois de duas semanas de vida artística.    

O fato de ser uma co-produção internacional justifica o uso frequente do idioma inglês, mas não impede que certas conversas no Brasil ganhem um tom fake, especialmente quando Vik assume a postura de pesquisador. Isso provoca um ruído na pretensa observação do processo. Deixa à vista uma certa teatralidade, que estaria melhor se plenamente assumida como performance.

Lixo Extraordinário, enfim, amplia o alcance e eterniza um projeto artístico de primeira grandeza, mas revela simultaneamente as contradições de seu viés sociológico. Mais fácil que examiná-las é consumir o filme como parte de um ato de enobrecimento humano.   

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